2012/11/28

Arquitetura Nômade

Arquitetura Nômade

Eduardo Paes
Washington Fajardo

Publicado no jornal O Globo em 20/04/2012

Há uma proteína no DNA no Rio de Janeiro que é muito rara: ousadia. É só olhar para a cidade, que nos últimos tempos se transformou em um canteiro de obras. É preciso ter paciência, é verdade. Mas o término do conjunto de intervenções que a prefeitura está promovendo vai reposicionar a Cidade Maravilhosa no século XXI. Estamos paulatinamente corrigindo a assimetria da qualidade dos serviços públicos: mobilidade, saneamento, equipamentos de saúde e educação, revitalização de espaços públicos. Estamos criando uma nova rede, mais bem distribuída e com maior coesão e eficiência. É o fim da cidade partida.

O planejamento para os Jogos Olímpicos é criterioso e segue muito bem. Ele é rigoroso, mas não é rígido - é flexível, aberto a inovações e a soluções ousadas e criativas. Está no nosso DNA, é só checar a história. A cidade do Rio já desmontou morros e com a terra fez aterros e aeroportos, construiu parques, abriu avenidas, redesenhou paisagens, edificou estátuas a 700 metros do nível do mar, uniu morros com bondes, afastou o mar e fez a maior obra paisagística do mundo: o Parque do Flamengo.

Os projetos para as Olimpíadas começam a se desenhar com base na premissa fundamental de construção de um legado. Os Jogos devem e vão servir à cidade. E queremos elevar essa capacidade olímpica de transformação à máxima potência. O que estamos propondo em termos de legado é um conceito totalmente novo, que acreditamos ser revolucionário, e cria um novo paradigma para a própria mecânica de produção das Olimpíadas - é a Arquitetura Nômade. Inteligência carioca pura.

Qual o sentido de edificar um prédio para ser usado por, no máximo, 30 dias? Ou de construir um espaço esportivo com número máximo de assentos necessários para o período de pico de lotação que, passado esse período, não conseguirá manter nem metade do público? Ou ainda projetar uma estrutura totalmente desconectada do perfil do bairro? Tamanho e localização são dois vetores fundamentais nesse processo.

Um aspecto decisivo para a vitória da cidade para sediar os Jogos Olímpicos de 2016 foi a de já ter uma quantidade de equipamentos esportivos. Alguns deles são urbanisticamente regeneradores, como o Engenhão; outros são importantes, mas trazem em si baixa contribuição urbana, como o Parque Aquático Maria Lenk. E se fosse possível fazer com que os prédios andassem, mudassem de formato ou de lugar? Então o velódromo do Parque Olímpico, na Barra, poderia se transformar em um Ginásio Experimental Carioca, em Anchieta. O complexo de tênis poderia virar uma biblioteca na Maré. A arena de lutas poderia se transmutar em um teatro na Região Portuária.

Isso é exatamente o que estamos propondo e queremos fazer. A cidade vai investir em novos prédios para eventual uso esportivo que, passada a utilidade olímpica, vão se reposicionar na cidade e ter sua finalidade convertida em algo que agregue valor e seja realmente útil ao dia a dia e à vida do carioca.

Na década de 30, Le Courbusir já falava em novos modos de construir. Há tecnologia para isso no mercado atual da engenharia civil. O mundo vive um novo limiar para a arquitetura com processos de pré-fabricação digital cada vez mais eficientes e de baixo custo. Não é simplesmente desfazer uma estrutura temporária ao final da competição. Vai muito além. Hoje, é possível desmontar prédios e reerguê-los com novas funções em outros lugares, onde façam mais sentido, em um tempo razoável e com custo otimizado. É possível, e necessário, trabalhar com os conceitos da reutilização de materiais, em projetos de menor impacto ambiental. Modernidade, sustentabilidade e novas tecnologias. Esta que estou chamando de Arquitetura Nômade busca conexões mais sinérgicas com o futuro e com as verdadeiras demandas das comunidades.

A Olimpíada não trata somente de esporte e não é só para o atleta. Ela significa mais equipamentos e serviços públicos de qualidade para a população do Rio. E é justamente por sua abrangência que as Olimpíadas são tão importantes para nossa cidade e foram tão desejadas. O Rio de Janeiro é hoje o centro urbano mais provocador do mundo, e os Jogos de 2016 devem espelhar a nossa ousadia. Afinal, ousadia está no DNA do Rio.


Eduardo Paes é Prefeito do Rio

Washington Fajardo é Secretário de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design

mais em:

artigo Revista Época

2012/03/06

As Lições De Uma Arquitetura Atemporal

As Lições De Uma Arquitetura Atemporal

Washington Fajardo*

Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 04/03/2012

A última segunda-feira ainda se iniciava, e debatia-se o reconhecimento do filme “O artista”pelo Oscar, quando outra obra silenciosa, mas vigorosa, era também reconhecida: o arquiteto chinês Wang Shu era anunciado ganhador do Pritzker de 2012, o Nobel da arquitetura.

Não tão conhecido como o Oscar, o Pritzker é um avaliador de momento e será, se longevo for, referência importante em um planeta no qual as escolhas de o quê, como e, até, por que construir serão decisivas. Temas de arquitetura e urbanismo serão cada vez mais usuais, de amplo domínio e debate. Hoje, a construção representa mais de 40% do consumo de energia mundial,e as cidades definirão o futuro da espécie se o homem não fizer melhores cidades. Por isso vale prestar atenção no Pritzker, e não nos vestidos.

Arquitetos-artesãos em alta

Desde a crise de 2008, há uma inflexão em curso. Saíram de cena prêmios para arquiteturas virtuosas— de arquitetos com muitas obras — para arquitetos-artesãos, com muito controle sobre temas raros, como a ancestralidade material (caso do suíço Peter Zumthor, premiado em 2009), a plasticidade do espaço (caso dos japoneses Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa, em 2010) ou a poética estrutural (caso do português Eduardo Souto de Moura,em 2011). Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha são nossos orgulhos pátrios, premiados em1988 e 2006, respectivamente.

O chinês I.M. Pei já havia sido laureado em 1983, mas sua obra está nos EUA. É a primeira vez que um chinês com produção no seu país é premiado. É também um prêmio para a China. Mas o Pritzker faz uma recomendação crítica. “O fato de que um arquiteto da China tenha sido selecionado representa um importante passo no reconhecimento do papel que o país terá no desenvolvimentodo ideário arquitetônico.(...) O sucesso da urbanização chinesa será importante para a China e para o mundo. Esta urbanização (...) precisa estarem harmonia com as necessidades locais e suas culturas. As oportunidades (...) deverão estarem harmonia com suas tradições do passado e com suas demandas futuras por desenvolvimento sustentável”, diz o júri.

Esta é uma crítica aberta à opção pela via fácil da arquitetura espetaculosa, realizando uma importação estéril da estética ocidental. É crítica também à construção acelerada de cidades novas, planejadas, mas com baixíssima densidade populacional,que já começam a ser apelidadas de “cidades-fantasma chinesas”.

O ápice desse fenômeno parece ser a cidade de Ordos, na Mongólia, fundada em 2001, com população de 1,5 milhão, mas densidade de 18 pessoas por quilômetro quadrado (no Rio, são cinco mil por quilômetro quadrado). Ordos é um playground para a nova arquitetura, com magníficos edifícios vazios.

O mais recente deles é o Museu de Ordos, projeto do escritório chinês MAD Architects. O museu é uma cápsula amorfa. É inventivo e produz interessante resultado visual, mas não há como não se lembrar dos livros de biologia e ter a sensação de imersão em um monumental retículo endoplasmático. Apesar da analogia com a vida celular,porém, o museu é ainda estéril.

“O recente processo de urbanização chinês reacende a discussão sobre se a arquitetura deve ancorar-se à tradição ou olhar somente para o futuro. Wang Shu é capaz de transcender esse debate, produzindo uma arquitetura atemporal, com fortes raízes no contexto e ainda assim universal”, disse o presidente do júri, Lord Palumbo.

“Uma tradição perdida significa um futuro perdido”, diz WangShu, 48 anos, fundador, com sua esposa, Lu Wenyu, do escritório Amateur (Amador) Architecture Studio, em 1997. Sua definição de amador é quase a do dicionário:alguém que se engaja em uma atividade mais por prazer do que por benefício financeiro ou razões profissionais. Mas Shu substitui “prazer” por “amor ao trabalho”, numa clara alusão ao pensamento de Confúcio.

Sua produção é ainda pouco conhecida — não há livros sobre sua obra. Mas, apesar da pouca idade, Shu demonstra profundo controle das diferentes escalas do trabalho arquitetônico, assim como domínio de técnicas construtivas vernaculares, tendo passado certo tempo em canteiros de obras para conhecer práticas e artes construtivas tradicionais. Seu início profissional foi como restaurador de edifícios.

O projeto mais surpreendentede Shu, pela transição vigorosa entre proporções distintas e entre memória e contemporaneidade, é o Museu Histórico de Ningbo— um ícone urbano e também um repositório de História. O edifício é singularíssimo: incorpora vigor, pragmatismo e emoção.Wang Shu debruça-se sobre técnicas e materiais tradicionais de modo experimental, ao usar telhas e tijolos de demolições de edifícios antigos, produzindo uma textura nova, mas oriunda da memória sensível, com efeito poético e leveza mesmo em um edifício de grandes proporções.

Shu trabalhou com os operários e permitiu que eles pudessem intervir nesse arranjo de empilhamento, criando em grandes murais momentos de surpresa e evitando os riscos de padronagem. São grandes pinturas que se convertem em matéria,sustentação e paredes.

“Arquitetura não é mais importante para mim do que a vida. Eu não acredito que você possa ser um bom arquiteto se não tiver uma boa vida”, ele diz.

Um pouquinho de Brasil

Os conhecedores ou não de arquitetura irão reconhecer a semelhança com o ensinamento de Oscar Niemeyer: “O mais importante não é a arquitetura, mas avida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar.” E irão reconhecer, na articulação de tradição e contemporaneidade, os princípios que tornaram singular a arquitetura moderna brasileira, cuja maestria (de Lúcio Costa) no projeto do Parque Guinle estarreceu o mundo, assim como o antigo MEC, atual Palácio Gustavo Capanema.

Mas o reconhecimento mais importante que podemos fazer deste Pritzker é que, em momentos de grande desenvolvimento, de “muita construção, pouca arquitetura e um milagre”, devemos nos posicionar altivamente diante da memória e da sustentabilidade,buscando a atemporalidade da arquitetura que Wang Shu elabora com distinção e sobriedade. Buscar a dimensão mais humanista da arquitetura e das cidades. Este é o desafio em países que ainda oscilam entre opulência e escassez. China e Brasil, tão longe, tão perto.

*Washington Fajardo, arquiteto e urbanista, é subsecretário de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design da Prefeitura do Rio.


2011/09/01

APAC SIM E PORQUÊ


APAC sim e porquê.

As APAC’s (Área de Proteção do Ambiente Cultural) mais uma vez voltam a ocupar espaço na mídia. Seja pelas discussões em curso na Câmara, seja por matérias de revistas relatando os problemas dos proprietários em conservar seus imóveis protegidos. Até mesmo as notícias que falam sobre demolições permitidas e autorizadas em contexto de APAC demonstram o impacto deste instrumento na vida urbana carioca com maior destaque do Centro à Zona Sul.

Chegamos a tal ponto que chega ser possível realizar controle das demolições de alguns bairros da cidade pelos jornais, tamanha é a preocupação com a descaracterização. É um aspecto muito positivo mas paradoxal da relação do carioca, em especial o morador da Zona Sul, com seu bairro: preocupado com a manutenção do seu status quo coletivo, mas topando vender a sua parcela deste mesmo status quo, e apoiando a despreservação.

Esta recorrência na mídia demonstra o papel importante das APAC’s na preservação das qualidades espaciais urbanas e porque devemos apoiar a institucionalidade deste instrumento e avançar para que ele possa se aperfeiçoar.

Instrumento urbanístico e de patrimônio cultural sofisticado, envolvendo aspectos de memória urbana, memória arquitetônica, paisagem construída, paisagem natural e espaço público, todos inter-relacionados, promovendo a proteção de uma boa forma e imagem urbana, que necessitam ir ao futuro protegidas, as APAC’s, em áreas  muito valorizadas em termos imobiliários, acabaram suscitando conflitos privados e públicos, coletivos e individuais, presentes e futuros.

As APAC’s representam uma oportunidade potencial para a cidade do Rio de Janeiro, e para os proprietários destes imóveis protegidos, ao se consolidarem como instrumento de manutenção da qualidade do ambiente construído. É importante que lutemos por isso!

Produz até valorização imobiliária, primeiro ao reduzir oferta em relação à demanda intra-bairro, segundo e mais importante, ao preservar qualidade em detrimento da quantidade.
Exemplo deste princípio é o bairro da Urca, protegido e com alto valor imobiliário. Santa Teresa também possui recortes de áreas muito apreciadas inseridas em áreas infelizmente depreciadas por processos de favelização.

O próprio bairro do Leblon se vangloria, e se valoriza, ao manter estas qualidades espaciais, onde somente cerca de 10% do bairro é preservado, uma parcela mínima, que é a mantenedora da memória da evolução urbanística e arquitetônica. Esta própria valorização faz pressão pelo fim desta preservação, tentando matar a “galinha dos ovos de ouro”.

A capacidade de fixar valor de modo sustentável (identidade, harmonia, história, inovação, reciclagem, humanismo, charme, design, arquitetura) que uma APAC cria é a mesma que determinará o sucesso das cidades, produtos, empresas e pessoas no século XXI, pela constatação que o final do século XX nos trouxe: tudo é finito! Recursos, natureza, pessoas e território. Não existe almoço de graça! Não teremos sempre território para expandirmos. Não é mais aceitável e responsável, jogarmos para as gerações futuras o custo do aumento territorial da cidade. Para nós, como americanos que somos, este é um grande desafio ao adotarmos novos paradigmas e práticas.

As APAC’s também são uma orientação urbanística e de patrimônio cultural da maior relevância ao propor para nossa cidade para um futuro mais harmônico, tendo como exemplo o passado, mas permitindo que o futuro possa se apropriar dele. Ou seja, as APAC’s criam uma cultura urbana cidadã, baseada na memória da cidade, que além de educar os cariocas do futuro, nos colocarão em patamar especial, diante do horror que é, infelizmente, o desenvolvimento urbano das cidades brasileiras e latino-americanas. APAC é estratégia urbana.

Expomos então um ponto crucial: o papel da terra urbana, e sua função social, numa cidade de alta qualidade espacial (natureza e construção), de alta carga histórica, social e cultural e de alta qualidade de design como o Rio de Janeiro, não é ofertar terrenos para a construção indefinidamente! É aumentar sua capacidade de adensamento sustentável de pessoas, negócios, cultura e inovação, aumentando cada vez mais sua capacidade competitiva como cidade e sociedade.

Por isso as APAC’s são tão questionadas em bairros onde o que se quer, na verdade, é a produção de novos terrenos em detrimento da qualidade espacial existente.

Obviamente, estes conceitos e objetivos, não eliminam as dificuldades que existem para alguns moradores ou proprietários “apacados”: a oferta de isenção de IPTU não é estímulo suficiente à conservação dos imóveis.

Por isto nossa orientação hoje no Patrimônio Cultural municipal é avançar na busca e na implementação de novos estímulos à conservação. Neste sentido, está previsto no substitutivo 3 do Plano Diretor, por ação nossa, a criação do Fundo Municipal de Conservação do Patrimônio Cultural, que permitirá aos proprietários ter acesso a financiamento público, com objetivo de conservar e recuperar seus imóveis protegidos. A criação deste Fundo também permitirá que fundos públicos, como o do Ministério da Cultura, do BNDES, ou fundos privados, possam investir nesta iniciativa. Um laboratório deste fundo tem funcionado através do programa Monumenta, nos arredores da Praça Tiradentes, com relativo sucesso e podemos ter uma melhor capacidade de implementação, resolvendo gargalos para a conservação de imóveis privados e criando uma cultura de patrimônio cidadão.

Estamos também estudando a criação de Operações Urbanas Consorciadas em áreas de APAC, a exemplo do caso bem sucedido implementado na Região Portuária, que permitiriam aos proprietários em contexto de APAC utilizar o potencial construído não realizado de seus terrenos, transferindo-os para áreas que necessitam de adensamento, como a Zona Norte, conforme estabelecido no Plano Diretor, convertendo-se também em recursos para a conservação. Neste sentido, estamos avaliando a contratação de estudos que tornem possível a criação deste instrumento.

É importante também que possamos implementar ferramental urbanístico criado no Estatuto das Cidades, e disponível desde 2001, como o IPTU progressivo, que apesar do nome agressivo é instrumento fundamental para combater a não utilização ou o baixo uso da terra urbana e a especulação imobiliária, combatendo a perda de densidade de áreas centrais da cidade, por exemplo, e implementando a função social da propriedade conforme previsto na Constituição de 1988, produzindo uma cidade mais justa e sustentável, e com maior dinamismo urbano, promovendo que imóveis históricos sejam utilizados, ao contrário do cenário que temos hoje no Centro do Rio, onde até ordens religiosas mantém imóveis conservados mas fechados e sem uso, promovendo uma hipocrisia urbana.

Deste modo, ampliando a cultura de conservação dos imóveis protegidos, consolidaremos o papel das APAC’s como instrumento de valorização da condição urbana da cidade do Rio de Janeiro e posicionaremos a cidade em um patamar especial de competitividade, atratatividade e, principalmente, de cidadania.

2010/11/04

Patrimônio Acorrentado

Ao longo do último ano, o Chafariz da Glória, patrimônio nacional, foi depredado e restaurado por quatro vezes seguidas, urgente e eficientemente, tanto pelo IPHAN quanto pela Prefeitura do Rio, porém essas ações não foram suficientes para protegê-lo. Agora, como alguns carros, será também blindado. Para proteger o Chafariz construído em 1742, será colocado vidro de 16 mm de espessura, solução drástica, justificável até, mas sinal da “morte” deste bem para nosso tempo presente.
Agressões deste tipo são uma das dimensões dramáticas da vida urbana contemporânea: a dissolução da identidade em fragmentos de memória apartados do tempo presente.
Lidar com estas questões é também um desafio para o sistema de patrimônio cultural de como inserir-se  nos processos de construção da cidade e da cidadania?
Na tragédia grega Prometeu Acorrentado escrita por Ésquilo, 500 anos antes de Cristo, o titã Prometeu, criador da humanidade, rouba o fogo sagrado e o dá ao Homem, tornando-o imagem e semelhança dos deuses. Enfurecido, Zeus ordena que acorrentem-no a um rochedo para que um corvo dilacere-lhe o fígado, que todos os dias regenera-se, sendo então todos os dias novamente dilacerado. O fogo é simbólo da inteligência, memória, ciência e arte, do anima da humanidade.
Não somente o chafariz é dilacerado continuamente, mas também o Patrimônio Cultural, como sistema estruturador do anima da Nação, acorrentado à uma estrutura criada na década de 30, de cultura lato sensu, dispondo ainda hoje de meios ínfimos para cuidar do acervo pelo qual é responsável. Como pode, em um cenário de protagonismo brasileiro no mundo, acorrentarmos nossa memória a um rochedo? O patrimônio é aspecto fundamental para a transformação brasileira. É fogo vivo que pode animar nossa cidadania.
Um ano antes do Jogos Olímpicos de 2016, em 2015, um ano antes do ápice de uma longa seqüência de eventos internacionais, o Rio comemorará seus 450 anos. Situação mais favorável do que esta não há. Tal sorte (será dádiva dos deuses?) não pode ser desperdiçada. É fundamental aproveitarmos este processo para promovermos a recuperação do nosso patrimônio tanto por ações diretas de restauro e salvaguarda, como através de ações educativas, criação de incentivos e disponibilização de recursos.
Por que não adotarmos soluções como as praticadas na Inglaterra que destina recursos da loteria para restauração? Por que não estimular que os bancos ofereçam créditos específicos para restauração de bens tombados? Sabemos que no entorno de um edifício restaurado externalidades e potencialidades econômicas são criadas, além do valor cultural e urbano agregado. Todos, pessoas e negócios, beneficiam-se da vizinhança de um edifício histórico conservado.
Mas é necessário também que as instituições de patrimônio façam uma auto-crítica e saiam da zona de conforto em que se encontram. Por que não nos envolvermos no debate sobre a produção arquitetônica e urbana contemporânea? Por que não promovermos projetos que contribuam para melhoria dos espaços públicos de contextos históricos?
Por que não fazemos valer nossa relevância econômica? Sabemos que ⅓ dos investimentos franceses contra a crise de 2008  foram aplicados em restauração. Na Espanha, a restauração é um setor com quantidade de empregos similar ao da indústria automobilística. Por que não interagimos mais com o turismo, como também tem feito a Inglaterra?
Por que não acompanhamos a velocidade das decisões do tempo presente?
É inegável que nos últimos anos houve avanços: o IPHAN com o Programa Monumenta e o PAC das Cidades Históricas. No Rio de Janeiro, o INEPAC, elaborou um importante Inventário sobre as Fazendas do Vale Fluminense. Nós do Patrimônio Municipal, conquistamos 3% dos recursos oriundos da venda das CEPACs do Porto Maravilha, tornando este programa, a primeira Operação Urbana no Brasil que terá também foco em patrimônio cultural. No Plano Diretor, em processo de aprovação na Câmara dos Vereadores, está prevista a criação do Fundo Municipal de Conservação do Patrimônio Cultural. Mas é necessário avançar mais.
É necessário ter meios para executar a missão, é preciso modernizar os instrumentos de gestão. É necessário libertarmos o patrimônio de suas correntes se não quisermos que as gerações futuras tenham sua memória protegida por vidros blindados.
Washington Fajardo
Arquiteto e urbanista
Subsecretário de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design

2010/09/28

Porto e Vila Olímpica

Porto e Vila Olímpica

Felipe Góes e Washington Fajardo

publicado no O Globo, 25/09/2010

Os Jogos Olímpicos de 2016 representam uma oportunidade única de transformação da cidade. Cabe a cidade capturar a oportunidade e extrair dela o máximo.
Um dos aspectos do projeto olímpico que merece atenção é a construção das vilas olímpicas. As vilas são as residências temporárias dos atletas, dos profissionais da mídia e dos árbitros. Serão 12 a 15 mil novas unidades residenciais construídas na cidade. Algo como 30 mil quartos. Durante os Jogos, essas residências serão operadas como grandes hotéis. Após os Jogos, serão vendidas como unidades residenciais.
Dezenas de prédios passarão a integrar a estrutura urbana da cidade. Portanto, cabe refletirmos sobre algumas questões. Onde serão construídas? Como serão ocupadas após os Jogos? Que aspectos arquitetônicos devem evidenciar? Quais requerimentos ambientais devem ser obedecidos? Que qualidade urbana e paisagística devem criar?
Barcelona levou a Vila dos Atletas para a área portuária como uma forma de revitalizá-la e integrá-la à cidade, iniciando um processo continuado de inovação urbanística que promoveu a completa recuperação de uma frente marítima de cerca de 6 km, quase a orla de Copacabana e Ipanema somadas. Vancouver desenvolveu um complexo urbano de baixo impacto ambiental com uma grande variedade de tipologias arquitetônicas e usos misturados: residencial, serviços e comércio. Londres minimizou os investimentos nas vilas, construindo apenas a vila dos atletas e alocando árbitros e profissionais da mídia nos hotéis da cidade. Londres conta com 90 mil quartos de hotéis, contra 29 mil no Rio. Nós não poderemos abrir mão das vilas de mídia e árbitros.
Todos estes exemplos dão-se em parcelas degradadas de uma cidade existente que se promove ao futuro com inovações urbanas e ambientais, nas quais o protagonismo da arquitetura é decisivo.
O projeto vencedor da candidatura Rio 2016 definiu que a região da Barra e Jacarepaguá concentraria, no entorno do autódromo, a quase totalidade dos quartos a serem construídos.  Funcionou para ganharmos a candidatura, mas funciona para a cidade no longo prazo? Definitivamente não.
Como aponta o Plano Diretor em discussão na Câmara Municipal, a região da Barra não requer incentivos por parte do poder público para crescer. Ao contrário, a Barra cresce mais rápido do que a infra-estrutura necessária para suportar a sua ocupação urbana.
Por isso, a Prefeitura do Rio, com o apoio do Comitê Organizador Rio 2016, fez um pleito ao Comitê Olímpico Internacional (COI) para a transferência de uma parcela dessas construções para a Região Portuária. A lógica é levar este importante legado para a região central com baixíssima densidade populacional - em cerca de 5 milhões de metros quadrados, vivem somente cerca de 20 mil pessoas. Esta área necessita, aí sim, de incentivos para a sua revitalização, previstos no âmbito do projeto Porto Maravilha.
A decisão do COI foi a de aprovar que 10 mil quartos sejam localizados no porto e que os quartos remanescentes da vila de mídia na Barra possam ser parcialmente substituídos por quartos de hotéis. Assim, será possível reduzir a pressão imobiliária na Barra, parte pela transferência de quartos para a região portuária, parte pela construção de hotéis.
A vila olímpica na Região Portuária será concebida e selecionada através de concurso público nacional de arquitetura e urbanismo, a ser conduzido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil nos próximos meses. O concurso permitirá a participação democrática dos arquitetos brasileiros na construção de uma nova referência urbanística no centro, no centenário do porto do Rio.
A vila olímpica na região portuária representa extrair dos Jogos o melhor para a cidade do Rio de hoje e de amanhã.

Felipe Góes
Secretário Municipal de Desenvolvimento

Washington Fajardo
Subsecretário Municipal de Patrimônio Cultural, Arquitetura e Design

2010/06/27

O vazio que nos move

Publicado no jornal O Globo, no dia 23/06/2010.


Em recente ensaio na Folha de São Paulo, o cineasta João Moreira Salles levanta questões sobre o porquê de formarmos mais profissionais nas áreas chamadas humanas em detrimento das áreas exatas no Brasil, com destaque para a necessidade de produzirmos mais cientistas e engenheiros. Como profissional ligado as artes, ele descreve as perdas da separação entre os mundos das Artes e das Ciências, criando uma carência de profissionais, e intelectuais, de cientistas humanistas. Homens e mulheres capazes de inovar.

O Rio de Janeiro está numa posição privilegiada para provocar este debate e mesmo ousar nesta direção. Aqui estão os dois mundos: Artes e Ciências. O Rio concentra boa parte da produção artística nacional, desde as artes plásticas até o audiovisual e o design. Aqui estão também alguns dos maiores centros de pesquisa e produção de conhecimento do Brasil. Não é a toa que o Rio produz o maior número de doutores e de patentes do país.

Neste mês de junho, tivemos o lançamento de dois projetos, que juntos, simbolizam esta convivência e representam esta ousadia da cidade.

No dia primeiro, foi lançado o projeto e a obra inicial de restauração do Museu de Arte do Rio, com o feliz acrônimo “MAR”, no Palacete Dom João VI. Uma parceria entre a Prefeitura e a Fundação Roberto Marinho, com apoio do Governo do Estado, no âmbito do projeto de revitalização da região portuária: o Porto Maravilha. A proposta do museu é dar ao público a oportunidade de conhecer e admirar obras importantes de artistas consagrados. O museu também criará um espaço para produção e provocação de experiências estéticas e pessoais, que funcionará dentro de suas instalações: a Escola do Olhar.

Vinte dias depois, foi apresentado o Museu do Amanhã. Um magnífico projeto de arquitetura do engenheiro valenciano Santiago Calatrava, no Píer Mauá, com uma inovadora abordagem museológica para um centro de divulgação científica: o ponto de vista humano em integração com a natureza, orientado pelas necessidades do tempo atual. O museu tratará de temas como sustentabilidade e o papel da tecnologia no desenho futuro de uma sociedade mais equilibrada. Este conteúdo, e sua arquitetura, produzirão na Baía de Guanabara um dos mais representativos museus do mundo, um investimento altamente estratégico no processo de recuperação da região e no fortalecimento de nossa centralidade urbana.

Serão dois equipamentos públicos separados por uma praça: um dedicado às Artes, outro às Ciências. Ambos terão abordagens inovadoras, misturando os dois campos, com o objetivo de atrair e envolver os jovens. A intenção é motivá-los a preparar seus futuros como cidadãos mais plenos e capazes.

E esta praça não é uma praça qualquer. É a Praça Mauá, nomeada em homenagem a Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, empreendedor e visionário do Segundo Império, portador de um pensamento liberal e empregador de inovações tecnológicas. É também a praça onde se encontra o órgão de registro nacional de propriedade intelectual, o INPI, no também simbólico edifício “À Noite”.

A Praça Mauá, este espaço vazio, mas tão rico em simbolismo e memória, que sediará uma casa das Artes, o MAR, e uma casa das Ciências, o Museu do Amanhã, será uma mola propulsora de um Rio que valoriza a sua história e constrói o seu futuro.

Felipe Góes
Secretário Municipal de Desenvolvimento

Washington Fajardo
Subsecretário Municipal de Patrimônio Cultural