2010/11/04

Patrimônio Acorrentado

Ao longo do último ano, o Chafariz da Glória, patrimônio nacional, foi depredado e restaurado por quatro vezes seguidas, urgente e eficientemente, tanto pelo IPHAN quanto pela Prefeitura do Rio, porém essas ações não foram suficientes para protegê-lo. Agora, como alguns carros, será também blindado. Para proteger o Chafariz construído em 1742, será colocado vidro de 16 mm de espessura, solução drástica, justificável até, mas sinal da “morte” deste bem para nosso tempo presente.
Agressões deste tipo são uma das dimensões dramáticas da vida urbana contemporânea: a dissolução da identidade em fragmentos de memória apartados do tempo presente.
Lidar com estas questões é também um desafio para o sistema de patrimônio cultural de como inserir-se  nos processos de construção da cidade e da cidadania?
Na tragédia grega Prometeu Acorrentado escrita por Ésquilo, 500 anos antes de Cristo, o titã Prometeu, criador da humanidade, rouba o fogo sagrado e o dá ao Homem, tornando-o imagem e semelhança dos deuses. Enfurecido, Zeus ordena que acorrentem-no a um rochedo para que um corvo dilacere-lhe o fígado, que todos os dias regenera-se, sendo então todos os dias novamente dilacerado. O fogo é simbólo da inteligência, memória, ciência e arte, do anima da humanidade.
Não somente o chafariz é dilacerado continuamente, mas também o Patrimônio Cultural, como sistema estruturador do anima da Nação, acorrentado à uma estrutura criada na década de 30, de cultura lato sensu, dispondo ainda hoje de meios ínfimos para cuidar do acervo pelo qual é responsável. Como pode, em um cenário de protagonismo brasileiro no mundo, acorrentarmos nossa memória a um rochedo? O patrimônio é aspecto fundamental para a transformação brasileira. É fogo vivo que pode animar nossa cidadania.
Um ano antes do Jogos Olímpicos de 2016, em 2015, um ano antes do ápice de uma longa seqüência de eventos internacionais, o Rio comemorará seus 450 anos. Situação mais favorável do que esta não há. Tal sorte (será dádiva dos deuses?) não pode ser desperdiçada. É fundamental aproveitarmos este processo para promovermos a recuperação do nosso patrimônio tanto por ações diretas de restauro e salvaguarda, como através de ações educativas, criação de incentivos e disponibilização de recursos.
Por que não adotarmos soluções como as praticadas na Inglaterra que destina recursos da loteria para restauração? Por que não estimular que os bancos ofereçam créditos específicos para restauração de bens tombados? Sabemos que no entorno de um edifício restaurado externalidades e potencialidades econômicas são criadas, além do valor cultural e urbano agregado. Todos, pessoas e negócios, beneficiam-se da vizinhança de um edifício histórico conservado.
Mas é necessário também que as instituições de patrimônio façam uma auto-crítica e saiam da zona de conforto em que se encontram. Por que não nos envolvermos no debate sobre a produção arquitetônica e urbana contemporânea? Por que não promovermos projetos que contribuam para melhoria dos espaços públicos de contextos históricos?
Por que não fazemos valer nossa relevância econômica? Sabemos que ⅓ dos investimentos franceses contra a crise de 2008  foram aplicados em restauração. Na Espanha, a restauração é um setor com quantidade de empregos similar ao da indústria automobilística. Por que não interagimos mais com o turismo, como também tem feito a Inglaterra?
Por que não acompanhamos a velocidade das decisões do tempo presente?
É inegável que nos últimos anos houve avanços: o IPHAN com o Programa Monumenta e o PAC das Cidades Históricas. No Rio de Janeiro, o INEPAC, elaborou um importante Inventário sobre as Fazendas do Vale Fluminense. Nós do Patrimônio Municipal, conquistamos 3% dos recursos oriundos da venda das CEPACs do Porto Maravilha, tornando este programa, a primeira Operação Urbana no Brasil que terá também foco em patrimônio cultural. No Plano Diretor, em processo de aprovação na Câmara dos Vereadores, está prevista a criação do Fundo Municipal de Conservação do Patrimônio Cultural. Mas é necessário avançar mais.
É necessário ter meios para executar a missão, é preciso modernizar os instrumentos de gestão. É necessário libertarmos o patrimônio de suas correntes se não quisermos que as gerações futuras tenham sua memória protegida por vidros blindados.
Washington Fajardo
Arquiteto e urbanista
Subsecretário de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design