MANIFESTO RIO 2020
ou O RIO DE CAROL, ANTONIO E NINA
Está diante de nós mais uma eleição municipal. Mas esta não é simplesmente “mais uma” eleição. Esta será a mais importante eleição municipal dos últimos 12 anos.
Pois esta será a eleição na qual decidiremos se vamos em direção a uma cidade melhor ou se vamos em direção a barbárie.
Tal constatação, não é um alerta característico das estratégias das políticas do medo, mas uma avaliação estatística dos fatos - violência, má administração pública, omissão política, má-fé política - que povoam as páginas de jornal. Tal constatação torna-se pior ainda quando analisamos este conjunto imenso de fatos pela lente do modelo vacilante de cidade com o qual lidamos cotidianamente.
Este modelo de cidade, esta presença sutil, esta alquimia, de domínio exclusivo, controlada pelos arquitetos e manobrada pelos políticos, impõe um cotidiano e dele se alimenta, num círculo vicioso.
O trânsito que não flui, os deslocamentos desumanos, a perda de qualidade do espaço público, “a” perda de espaço público, a favelização acelerada, a deterioração da infra-estrutura, o esvaziamento do centro, a dengue que cresce nos terrenos baldios e no lixo, o patrimônio histórico destruído, a valorização imobiliária injusta e desregrada, a desordem urbana, as leis inúteis, os camelôs, a imensa demanda da rede hospitalar, a falta de leitos, a falta de vagas nas escolas, o esvaziamento econômico, a perda de oportunidades, são os aspectos mais concretos deste modelo caduco, cuja face menos óbvia - e não tão diretamente associada à questão urbana - são a violência, a insegurança, o medo, o stress, a paranóia, a neurose, a doença, a corrupção, a feiúra, e, a mais temerosa, a apatia.
Não associamos estes problemas ao modelo urbano escolhido por nós, ou através de nós - não alcançamos o impacto das decisões urbanísticas pelo tempo longo no qual elas se impõem - e não percebemos quando exatamente a vacina passa a ser doença. Problemas cujo modelo de cidade deveria corrigir, ao falhar, ou ao ser inócuo, no tempo, geram problemas maiores que aqueles para o qual foi ensaiado.
Possuímos uma compreensão imediata, sensível sócio-economicamente para o cotidiano e suas mazelas. Observamos a miséria, sentimos a pobreza, atentamos para a corrupção e a violência, mas quando, nas eleições municipais, não entendemos a mensagem da oferta urbanística que nos é feita, não percebemos o tempo longo em que serão construídas, sob, sobre e dentro de nós, ficamos a mercê destas decisões. Somos conduzidos. E nestes hiatos de eficiência e falência, de sucesso e fracasso, constroem-se relações baseadas na desordem, interesses baseados no caos e na ausência da razão.
O sonho da razão produz monstros.
E a monstruosidade avança folgadamente, e fogosamente, pela cidade.
Mas também não existe um mentor diante do caos consagrado. Mas um conjunto de interesses dispersos, cuja articulação rompe, através da normalidade, e pelos meios legais, a esfera do privado e alcançam status público. É assim na desordem urbana e na permissão da gestão municipal, é assim no caos do transporte público e na omissão dos agentes fiscalizadores, é assim também, terrivelmente, nas manifestações de violência e na constatação concreta do terror instaurado e do abandono da cidade.
É imperioso compreendermos nossa relação com o lugar.
Aqueles cujas histórias familiares remetem à vida no interior, digo isso sem bucolismos, compreendem a idéia de mescla do tempo de vida com o tempo lugar.
Pois nosso tempo é urbano. Tem pressa e pode nos devorar. Precisamos (nos) entender.
E este é nosso momento na história.
Temos, na nossa família, nas nossas mentes, nos nossos corpos, uma conjunção intrínseca com nosso território, com a cidade que escolhemos para viver. Esta mescla é imperiosa à grande maioria - excetuam-se aqueles que possuem grande capacidade de mobilidade, cujo território passa a ser mais global: os mais ricos, a elite, e que por isto mesmo perdem a capacidade de apontar novos rumos, inebriados que estão por uma cidade maior: o planeta.
(Há que se desconfiar sempre dos políticos que muito viajam).
O modelo de cidade que nos foi proposto há três gestões atrás, há doze anos, caducou.
Uma gestão inicialmente afrontada por arquitetos e idéias urbanas converteu-se em vazios imensos, edificados na ruína da perda de sentido da transformação real, estrutural, para um simples jogo global. Para uma cidade ineficiente povoada de imagens esmaecidas de uma transformação contundente que deveria ter sido mas não foi.
Estamos hoje na terceira divisão das cidades globais.
Perdemos a oportunidade de promover melhorias estruturais na cidade quando dos Jogos Pan-americanos. Não houve melhoria nenhuma na rede de transporte público. Não houve melhoria na rede hospitalar. Não fluímos melhor pela cidade. Não construímos pontes entre territórios partidos. Não apontamos hoje para um horizonte melhor de cidade, pelo contrário.
Inegável, temos hoje melhores equipamentos esportivos. Mas por que não se aproveitou as oportunidades e o ambiente de recursos? Por que não fizemos História? Mas ouvimos muitas estórias...
Esta trajetória, iniciada há 12 anos atrás, há três gestões municipais, descreveu no tempo um arco balístico, cujo ápice, ou cume, o Pan, foi medíocre. Na escala do helicóptero, ou dos governantes, o Engenhão é belíssima obra, mas na escala do pedestre, a população, não basta ser morador do engenho de dentro, basta dar uma volta no quarteirão do estádio para perceber a total perda de qualidade daquele ambiente.
Repetimos, acintosamente, mesmo depois de estudos, teses e saberes adquiridos, o mesmo erro quando da abertura do Sambódromo: destrói-se uma localidade em prol de uma obra magnânima.
Por que, mesmo depois de 12 anos de Programa Favela Bairro, ainda temos na favelização um problema crucial da nossa cidade? Será que fomos a fundo na questão? Quantas comunidades receberão a propriedade dos seus imóveis?
Essa trajetória balística de 12 anos hoje cai vertiginosamente sobre nossas cabeças tal qual bala perdida.
Por que esta dicotomia? Por que se perdeu a oportunidade de uma transformação real em troca da construção de cenários? Porquê a transformação real implica em planejamento melhor, em mais democracia, em melhor ambiente técnico, e menos político e, consequentemente, numa visão politicamente obtusa, na perda de status quo.
Basta observar o intenso tráfego de políticos a Bogotá e Medellín, na Colômbia, pois lá se comprovou o contrário: houve melhoria real promovida pelo poder vigente.
A real transformação implica em colocar outros horizontes em foco: pautar a mudança da cidade física pela mudança da vida das pessoas, nos seus aspectos de menor escala: a rua, a praça, a escola, o hospital.
Referenciar a mudança pensando nas crianças.
Temos hoje uma cidade boa para as crianças? Teremos em 2020?
As eleições deste ano podem dar início a um novo arco no tempo de 12 anos. Um novo ciclo.
Que cidade teremos em 2020?
Até lá teremos novamente mais dois grandes eventos: a Copa do Mundo de 2014 e, talvez, as Olimpíadas de 2016. Seremos capazes de produzir uma cidade melhor a partir destas novas oportunidades ou cometeremos os mesmos erros? Essa decisão também se inicia nas eleições deste ano.
Estes eventos são novamente oportunidades para a criação de um ambiente de excelência: econômico, político e técnico.
Seremos capazes de produzir a real transformação?
Seremos capazes de produzir um Rio em 2020 melhor para nossas crianças?
Esta é “a” decisão que estas eleições nos trazem: imagens ou vida real, slogans ou crianças?
Esta é medida das ações urbanas. Este é o tempo da cidade. A decisão de hoje implicará numa realidade, boa ou ruim, no futuro.
Tenho em casa três crianças: Carol, minha querida enteada, meus filhos Antonio e Nina. No Rio de 2020, Carol, terá 22, Antonio, 14 e Nina terá 12. Terão eles crescido em uma cidade melhor? Terão eles na cidade um ponto de referência da democracia, do convívio entre diferentes? Terão eles usufruído da rua? Sentir-se-ão cidadãos cariocas plenos ou serão uma parcela protegida? Sentir-se-ão aptos a fazerem a sua busca da felicidade no Rio de 2020?
Um modelo de cidade deve ser um modelo de fortalecimento da vida em seus aspectos mais elevados: democracia, oportunidades, saúde, educação, economia, cultura e ecologia. Devemos rechaçar radicalmente o marketing, o slogamismo, a mídia política.
O Rio de 2020 pode ser o Rio de 2014, pode ser o Rio de 2016, mas deve ser, antes e prioritariamente, o Rio de Carol, Antonio e Nina: uma cidade de vida real, de pessoas reais, planejada pela razão, eficiente, justa e cheia de sonhos e idéias.
Neste planeta, e por enquanto só temos este, as cidades são nossos lares, são nossos corpos, nossas famílias. São também nossas crianças. Devemos pensar muito bem no Rio de 2020 a começar pelas próximas eleições.