2012/11/28

Arquitetura Nômade

Arquitetura Nômade

Eduardo Paes
Washington Fajardo

Publicado no jornal O Globo em 20/04/2012

Há uma proteína no DNA no Rio de Janeiro que é muito rara: ousadia. É só olhar para a cidade, que nos últimos tempos se transformou em um canteiro de obras. É preciso ter paciência, é verdade. Mas o término do conjunto de intervenções que a prefeitura está promovendo vai reposicionar a Cidade Maravilhosa no século XXI. Estamos paulatinamente corrigindo a assimetria da qualidade dos serviços públicos: mobilidade, saneamento, equipamentos de saúde e educação, revitalização de espaços públicos. Estamos criando uma nova rede, mais bem distribuída e com maior coesão e eficiência. É o fim da cidade partida.

O planejamento para os Jogos Olímpicos é criterioso e segue muito bem. Ele é rigoroso, mas não é rígido - é flexível, aberto a inovações e a soluções ousadas e criativas. Está no nosso DNA, é só checar a história. A cidade do Rio já desmontou morros e com a terra fez aterros e aeroportos, construiu parques, abriu avenidas, redesenhou paisagens, edificou estátuas a 700 metros do nível do mar, uniu morros com bondes, afastou o mar e fez a maior obra paisagística do mundo: o Parque do Flamengo.

Os projetos para as Olimpíadas começam a se desenhar com base na premissa fundamental de construção de um legado. Os Jogos devem e vão servir à cidade. E queremos elevar essa capacidade olímpica de transformação à máxima potência. O que estamos propondo em termos de legado é um conceito totalmente novo, que acreditamos ser revolucionário, e cria um novo paradigma para a própria mecânica de produção das Olimpíadas - é a Arquitetura Nômade. Inteligência carioca pura.

Qual o sentido de edificar um prédio para ser usado por, no máximo, 30 dias? Ou de construir um espaço esportivo com número máximo de assentos necessários para o período de pico de lotação que, passado esse período, não conseguirá manter nem metade do público? Ou ainda projetar uma estrutura totalmente desconectada do perfil do bairro? Tamanho e localização são dois vetores fundamentais nesse processo.

Um aspecto decisivo para a vitória da cidade para sediar os Jogos Olímpicos de 2016 foi a de já ter uma quantidade de equipamentos esportivos. Alguns deles são urbanisticamente regeneradores, como o Engenhão; outros são importantes, mas trazem em si baixa contribuição urbana, como o Parque Aquático Maria Lenk. E se fosse possível fazer com que os prédios andassem, mudassem de formato ou de lugar? Então o velódromo do Parque Olímpico, na Barra, poderia se transformar em um Ginásio Experimental Carioca, em Anchieta. O complexo de tênis poderia virar uma biblioteca na Maré. A arena de lutas poderia se transmutar em um teatro na Região Portuária.

Isso é exatamente o que estamos propondo e queremos fazer. A cidade vai investir em novos prédios para eventual uso esportivo que, passada a utilidade olímpica, vão se reposicionar na cidade e ter sua finalidade convertida em algo que agregue valor e seja realmente útil ao dia a dia e à vida do carioca.

Na década de 30, Le Courbusir já falava em novos modos de construir. Há tecnologia para isso no mercado atual da engenharia civil. O mundo vive um novo limiar para a arquitetura com processos de pré-fabricação digital cada vez mais eficientes e de baixo custo. Não é simplesmente desfazer uma estrutura temporária ao final da competição. Vai muito além. Hoje, é possível desmontar prédios e reerguê-los com novas funções em outros lugares, onde façam mais sentido, em um tempo razoável e com custo otimizado. É possível, e necessário, trabalhar com os conceitos da reutilização de materiais, em projetos de menor impacto ambiental. Modernidade, sustentabilidade e novas tecnologias. Esta que estou chamando de Arquitetura Nômade busca conexões mais sinérgicas com o futuro e com as verdadeiras demandas das comunidades.

A Olimpíada não trata somente de esporte e não é só para o atleta. Ela significa mais equipamentos e serviços públicos de qualidade para a população do Rio. E é justamente por sua abrangência que as Olimpíadas são tão importantes para nossa cidade e foram tão desejadas. O Rio de Janeiro é hoje o centro urbano mais provocador do mundo, e os Jogos de 2016 devem espelhar a nossa ousadia. Afinal, ousadia está no DNA do Rio.


Eduardo Paes é Prefeito do Rio

Washington Fajardo é Secretário de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design

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artigo Revista Época

2012/03/06

As Lições De Uma Arquitetura Atemporal

As Lições De Uma Arquitetura Atemporal

Washington Fajardo*

Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 04/03/2012

A última segunda-feira ainda se iniciava, e debatia-se o reconhecimento do filme “O artista”pelo Oscar, quando outra obra silenciosa, mas vigorosa, era também reconhecida: o arquiteto chinês Wang Shu era anunciado ganhador do Pritzker de 2012, o Nobel da arquitetura.

Não tão conhecido como o Oscar, o Pritzker é um avaliador de momento e será, se longevo for, referência importante em um planeta no qual as escolhas de o quê, como e, até, por que construir serão decisivas. Temas de arquitetura e urbanismo serão cada vez mais usuais, de amplo domínio e debate. Hoje, a construção representa mais de 40% do consumo de energia mundial,e as cidades definirão o futuro da espécie se o homem não fizer melhores cidades. Por isso vale prestar atenção no Pritzker, e não nos vestidos.

Arquitetos-artesãos em alta

Desde a crise de 2008, há uma inflexão em curso. Saíram de cena prêmios para arquiteturas virtuosas— de arquitetos com muitas obras — para arquitetos-artesãos, com muito controle sobre temas raros, como a ancestralidade material (caso do suíço Peter Zumthor, premiado em 2009), a plasticidade do espaço (caso dos japoneses Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa, em 2010) ou a poética estrutural (caso do português Eduardo Souto de Moura,em 2011). Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha são nossos orgulhos pátrios, premiados em1988 e 2006, respectivamente.

O chinês I.M. Pei já havia sido laureado em 1983, mas sua obra está nos EUA. É a primeira vez que um chinês com produção no seu país é premiado. É também um prêmio para a China. Mas o Pritzker faz uma recomendação crítica. “O fato de que um arquiteto da China tenha sido selecionado representa um importante passo no reconhecimento do papel que o país terá no desenvolvimentodo ideário arquitetônico.(...) O sucesso da urbanização chinesa será importante para a China e para o mundo. Esta urbanização (...) precisa estarem harmonia com as necessidades locais e suas culturas. As oportunidades (...) deverão estarem harmonia com suas tradições do passado e com suas demandas futuras por desenvolvimento sustentável”, diz o júri.

Esta é uma crítica aberta à opção pela via fácil da arquitetura espetaculosa, realizando uma importação estéril da estética ocidental. É crítica também à construção acelerada de cidades novas, planejadas, mas com baixíssima densidade populacional,que já começam a ser apelidadas de “cidades-fantasma chinesas”.

O ápice desse fenômeno parece ser a cidade de Ordos, na Mongólia, fundada em 2001, com população de 1,5 milhão, mas densidade de 18 pessoas por quilômetro quadrado (no Rio, são cinco mil por quilômetro quadrado). Ordos é um playground para a nova arquitetura, com magníficos edifícios vazios.

O mais recente deles é o Museu de Ordos, projeto do escritório chinês MAD Architects. O museu é uma cápsula amorfa. É inventivo e produz interessante resultado visual, mas não há como não se lembrar dos livros de biologia e ter a sensação de imersão em um monumental retículo endoplasmático. Apesar da analogia com a vida celular,porém, o museu é ainda estéril.

“O recente processo de urbanização chinês reacende a discussão sobre se a arquitetura deve ancorar-se à tradição ou olhar somente para o futuro. Wang Shu é capaz de transcender esse debate, produzindo uma arquitetura atemporal, com fortes raízes no contexto e ainda assim universal”, disse o presidente do júri, Lord Palumbo.

“Uma tradição perdida significa um futuro perdido”, diz WangShu, 48 anos, fundador, com sua esposa, Lu Wenyu, do escritório Amateur (Amador) Architecture Studio, em 1997. Sua definição de amador é quase a do dicionário:alguém que se engaja em uma atividade mais por prazer do que por benefício financeiro ou razões profissionais. Mas Shu substitui “prazer” por “amor ao trabalho”, numa clara alusão ao pensamento de Confúcio.

Sua produção é ainda pouco conhecida — não há livros sobre sua obra. Mas, apesar da pouca idade, Shu demonstra profundo controle das diferentes escalas do trabalho arquitetônico, assim como domínio de técnicas construtivas vernaculares, tendo passado certo tempo em canteiros de obras para conhecer práticas e artes construtivas tradicionais. Seu início profissional foi como restaurador de edifícios.

O projeto mais surpreendentede Shu, pela transição vigorosa entre proporções distintas e entre memória e contemporaneidade, é o Museu Histórico de Ningbo— um ícone urbano e também um repositório de História. O edifício é singularíssimo: incorpora vigor, pragmatismo e emoção.Wang Shu debruça-se sobre técnicas e materiais tradicionais de modo experimental, ao usar telhas e tijolos de demolições de edifícios antigos, produzindo uma textura nova, mas oriunda da memória sensível, com efeito poético e leveza mesmo em um edifício de grandes proporções.

Shu trabalhou com os operários e permitiu que eles pudessem intervir nesse arranjo de empilhamento, criando em grandes murais momentos de surpresa e evitando os riscos de padronagem. São grandes pinturas que se convertem em matéria,sustentação e paredes.

“Arquitetura não é mais importante para mim do que a vida. Eu não acredito que você possa ser um bom arquiteto se não tiver uma boa vida”, ele diz.

Um pouquinho de Brasil

Os conhecedores ou não de arquitetura irão reconhecer a semelhança com o ensinamento de Oscar Niemeyer: “O mais importante não é a arquitetura, mas avida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar.” E irão reconhecer, na articulação de tradição e contemporaneidade, os princípios que tornaram singular a arquitetura moderna brasileira, cuja maestria (de Lúcio Costa) no projeto do Parque Guinle estarreceu o mundo, assim como o antigo MEC, atual Palácio Gustavo Capanema.

Mas o reconhecimento mais importante que podemos fazer deste Pritzker é que, em momentos de grande desenvolvimento, de “muita construção, pouca arquitetura e um milagre”, devemos nos posicionar altivamente diante da memória e da sustentabilidade,buscando a atemporalidade da arquitetura que Wang Shu elabora com distinção e sobriedade. Buscar a dimensão mais humanista da arquitetura e das cidades. Este é o desafio em países que ainda oscilam entre opulência e escassez. China e Brasil, tão longe, tão perto.

*Washington Fajardo, arquiteto e urbanista, é subsecretário de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design da Prefeitura do Rio.